quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O Abutre

Não é fácil conservarmos a noção exacta da realidade. Todos os dias e das mais variadas formas somos injectados com doses maciças de surrealismo que nos dão como adquirido coisas como um Portugal tecnologicamente evoluído, em que até as criancinhas computam; solidariamente forte, em que até aos velhinhos são oferecidos telemóveis para contactos de urgência; e infra-estruturalmente desenvolvido, com pontes que são exemplos de engenharia e TGV aí ao virar da esquina.
A natureza dos acontecimentos quotidianos resiste, contudo, às rasteiras matreiras da retórica e a cada passo, qual lufada de ar fresco, os mais variados episódios deixam-nos com os pés bem assentes no chão. É aí que nos deparámos com Portugal na sua verdadeira dimensão. Um país célere a cobrar impostos aos contribuintes, mas marimbando-se puramente e simplesmente para os problemas e apertos das pessoas concretas, a não ser para aquelas que, tendo tempo, sejam turronas e estejam dispostas a prescindir de boa parte da sua dignidade, pedinchem dias e horas a fio nas intermináveis filas das burocracias nacionais.
Como a dona Augusta Duarte Martinho, pobre coitada, não pôde dar de si para reclamar dignidade e defender os seus pertences, o Estado Social, para quem se calhar descontou toda a vida, pura e simplesmente não quis saber. Morta no chão da cozinha há nove anos, foi preciso entrar em campo o Estado Fiscal que, sem que ninguém o chamasse, esse sim funcionou na perfeição, cobrando-lhe as suas inevitáveis dívidas ao fisco com o leilão da sua habitação, numa imagem perfeita do necrófago abutre.
Num ápice, ficámos a perceber por que é que a página da internet do Ministério das Finanças funciona na perfeição, enquanto a sua congénere do Ministério da Segurança Social é bem mais limitada. Por que é que não existem filas à porta das finanças, enquanto que na segurança social são precisas injecções de paciência para as pessoas serem atendidas. Por que razão numa os prazos não falham, e noutra não existem .
Bem vindos à terra!

Amanhã, 17-02-2011, no Cidade Hoje Jornal

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