quarta-feira, 9 de março de 2011

Inócuos Episódios

Na década de 80 do século passado, o então Presidente da República, Mário Soares, avançou com o programa “Presidência Aberta”, para “auscultação das populações e das forças mais vivas de cada região". A moda pegou e, salvo pequenas variações de nome, é hoje uma tradição na política nacional. Jorge Sampaio, por exemplo, avançou com as “Jornadas da Presidência”, Cavaco, chama-lhe “Roteiros” e Sócrates opta por “Governo Presente”. Se a ideia até poderia ser boa, a forma como é executada transformam-na numa perfeita inutilidade. É que percebe-se com facilidade que não é coisíssima nenhuma a auscultação das populações que está em causa, mas antes o pavoneamento dos governantes à populaça da província que, já se sabe, é todo o Portugal excepto Lisboa.
Veja-se o caso recente do primeiro ministro de Portugal que dedicou um fim de semana à região de Trás-os-Montes, naquela que foi a primeira iniciativa do “Governo Presente” de 2011. José Sócrates e séquito correspondente foram recebidos com as mordomias da praxe, pois a hospitalidade é ponto de honra da lusa gente. Contudo, entre lançamentos de primeiras pedras, visitas a obras e inaugurações, saltou-se de festa em festa, de alegria em alegria, sem que houvesse verdadeira disposição para se ouvir além do som do rancho folclórico local ou das crianças da creche do centro social. Entre tanto ruído festivo, sempre fica por conhecer o som da amargura de quem tem que recorrer a serviços públicos que não funcionam, funcionam mal, ou que pura e simplesmente estão em vias de extinção. Não há espaço para, in loco, se perceber o porquê do tanto desânimo que afecta o nosso povo, quiçá pelo conforto de se manter longe do coração aquilo qua a vista desarmada não permitiria.
Quando confrontado com estes inócuos episódios, sempre me vem à memória o Papa Kiril Lakota que Morris West criou em “As Sandálias do Pescador” e que, num humilde momento de lucidez, despe as vestes papais e pela calada da noite passeia-se incógnito pela cidade, absorvendo a realidade tal como ela de facto era e não como até ele lhe chegava.
 A mensagem vem do século passado - o livro foi publicado em 1963 - mas a sua actualidade deveria estar bem presente na mente de todos aqueles que, por força das circunstâncias, têm responsabilidades na gestão do erário público e que honestamente se interessem pela qualidade de vida das populações. Quanto aos outros, mais valia que não saíssem da capital. Sempre se poupava dinheiro.

Amanhã, 10-03-2011, no Cidade Hoje Jornal

segunda-feira, 7 de março de 2011

Semeador


Vincent Van Gogh - Semeador




Mas todo o Semeador
Semeia contra o presente.
Semeia como vidente
A seara do futuro
Sem saber se o chão é duro
E lhe recebe a Semente.

                   Miguel Torga

sexta-feira, 4 de março de 2011

DEMOCRACIA POR MEDIDA

Guardo na memória uma professora que tive nos meus anos de liceu na disciplina de Saúde. Ironia das ironias, a senhora fumava como uma desalmada e sentia necessidade de confrontar constantemente os alunos com a frase “olha para o que eu digo, não para o que faço”. Nunca concordei com a moral da frase! Mais do que um recurso pedagógico, esta velha máxima parece-me mais reflexo de uma atitude hipócrita de quem é incapaz de dar o exemplo, apesar de saber que, mais do que qualquer outra pessoa, esse era o seu dever.
Apesar de nem sempre ser traduzida de forma tão expressiva, parece-me que muitos dos portugueses vivem sob esta máxima, situação que pode explicar os atropelos constantes à lei por parte da nossa sociedade e as tão conhecidas jogadas de bastidores que, em prejuízo do bem comum, servem interesses individuais ou corporativos. Daqui resulta a fragilidade da nossa democracia, traduzida na escassez de cidadania dos portugueses e no alto descrédito das instituições públicas.
Muitos dos profissionais da política que temos no país são os grandes culpados por este estado de coisas. É que, tal como a professora de Saúde, deveriam ser os primeiros a darem o exemplo. Só que, tantas vezes, são os primeiros sim, mas é na arte de ludibriar, de jogar, de desrespeitar as regras básicas da democracia que tanto apregoam.